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‘Se o Estado não interviesse nas relações de trabalho, estaríamos na barbárie’
Reforma trabalhista é um fracasso
20/05/2019




 Passados dezoito meses da entrada em vigor, em 11 de novembro de 2017, a reforma trabalhista não conseguiu entregar suas duas principais promessas: a redução do desemprego e o aumento da segurança jurídica. A avaliação é da juíza do Trabalho Carolina Hostyn Gralha, presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (Amatra IV).

 

“Eu costumo falar que, gostando ou não gostando da reforma trabalhista, há dificuldades técnicas em relação ao seu texto que até hoje empreendedores e trabalhadores não sabem como aplicar na prática no dia a dia. Essa é avaliação negativa que eu faço da reforma trabalhista, porque o que a gente identifica é um grande empobrecimento da população”, diz.

 

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o índice de desemprego voltou a subir no primeiro trimestre para 12,7%, o maior patamar desde maio de 2018. Aos 13,4 milhões de desempregados, somam-se 4,8 milhões de desalentados (que desistiram de procurar), 6,7 milhões de subocupados (que trabalham menos de 40h) e 3,3 milhões fora da força de trabalho potencial, e o Brasil tem 28,3 milhões de pessoas subtilizadas, 25% da sua força de trabalho, o que consiste no maior percentual desde que o IBGE começou a medir esse índice, em 2012. Além disso, há quase 40 milhões de brasileiros trabalhando na informalidade, quatro milhões para aplicativos como Uber, 99, Rappi e iFood, em uma relação de trabalho que está sendo chamada de uberização.

“A ideia lógica da modernização que era proposta pela reforma trabalhista era o contrário, era dizer que facilitaria as contratações. Não facilita, continua exatamente a mesma coisa. O que facilita a contratação é investimento, aquecimento da economia, isso aumentaria os postos de trabalho e não o que está acontecendo agora”, diz Gralha.

 

A magistrada também fala da possibilidade de extinção da Justiça do Trabalho, já ventilada pelo governo Bolsonaro, e sobre o que se sabe até agora da “carteira de trabalho verde e amarela”, uma das promessas de campanha do atual presidente. Confira a seguir a íntegra da entrevista.

 

Sul21 – Como a senhora avalia a reforma trabalhista até agora? Quais são os efeitos positivos e negativos?

 

Carolina Gralha: Com um ano e meio de reforma trabalhista, a avaliação que nós temos é que ela não entregou aquilo que se propôs a entregar. O governo da época conseguiu aprovar de uma forma bastante acelerada esse projeto no Congresso, fazendo duas grandes promessas: redução de desemprego e aumento da segurança jurídica. Hoje nós temos desemprego estagnado, um grande número da população desempregada, um aumento no número de pessoas desalentadas, e não temos segurança jurídica. Até mesmo porque houve alteração de 100 artigos da legislação trabalhista sem qualquer tipo de regra de transição, por exemplo, sem qualquer discussão com os pensadores, com a comunidade jurídica propriamente dita. Então, quando a gente tem uma profunda alteração, não só do conceito de Direito material, como de Direito processual, evidentemente que até nós termos toda essa consolidação de posicionamentos, uma concretização do que é a reforma trabalhista, a gente vai ter muitas decisões antagônicas, até mesmo porque o próprio texto da reforma trabalhista é antagônico em muitos aspectos. Então, eu costumo falar que, gostando ou não gostando da reforma trabalhista, há dificuldades técnicas em relação ao seu texto que até hoje empreendedores e trabalhadores não sabem como aplicar na prática no dia a dia. Essa é avaliação negativa que eu faço da reforma trabalhista, porque o que a gente identifica é um grande empobrecimento da população. Não gerou nem aquecimento da economia, ao contrário, a gente está vendo a economia reduzida e caminhando para trás.

 

Sul21 – Quando a gente pensa em reforma, a expectativa é que seja uma política implementada por anos. Te parece que essa reforma foi feita para ser novamente reformada logo em seguida? Sabendo-se dos problema que ela tinha e que seria apenas uma primeira etapa da reforma?

 

Gralha: Nós fizemos um trabalho parlamentar bastante incisivo durante a discussão da reforma trabalhista. Nós conversamos com diversos parlamentares e com o próprio então deputado federal Rogério Marinho [relator da reforma] a respeito de diversas proposições e nós apresentamos diversas emendas para que o texto ficasse mais adequado à realidade brasileira. O que nós ouvíamos nos corredores do Congresso? ‘Vamos aprovar do jeito que está e depois a gente dá um jeito’. ‘Vamos aprovar, tem que modernizar, tem que mudar e depois o que for de excesso a gente volta atrás’. Vários parlamentares nos falaram isso com uma tranquilidade ímpar, o que nos assustava muito. Como nós não somos do meio político, isso nos assusta porque é a vida do trabalhador, é a vida do empreendedor. Aquilo ali é o que eles se dedicam a vida inteira e quando tu faz uma lei para depois ver como é que vai ficar e voltar atrás, o que te parece? Que tanto faz o que vai acontecer com a vida lá da ponta do trabalhador e do empreendedor, desde que a gente consiga empurrar aquilo ali. O que aconteceu? Quando é aprovada no Senado, o próprio relator do Senado declarou publicamente que recomendava que o Executivo fizesse a Medida Provisória [a MP 808 foi editada para promover alterações na reforma recém aprovada], como de fato fez e depois acabou não sendo convertida em lei. Então, demonstra a fragilidade do próprio convencimento do parlamentar a respeito dessas alterações. Isso é preocupante, nem os parlamentares tinham certeza daquilo que tinha que ser mudado na legislação trabalhista.

 

A reforma foi o projeto de lei que mais sofreu pedidos de emendas, recebeu mais de mil. É muita alteração. Demonstra que esse grande bolo de alteração de mais de 100 artigos, na verdade foi um bolo muito mal feito que estava pronto para ser abatumado.

 

Infelizmente, a gente tem esse cenário que preocupa muito, porque, na verdade, numa avaliação mais externa do que se quer do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, nós temos um segmento bastante significativo da população que quer sim a redução cada vez maior do Direito do Trabalho e o fim da Justiça do Trabalho. Isso não é segredo, isso é dito de forma muito clara por diversos segmentos e tem que ser objeto da nossa preocupação. Nós temos 58% de demandas trabalhistas que versam sobre o pedido de verbas rescisórias, ou seja, aquela pessoa que perdeu o emprego e não vai ter aviso prévio, férias, 13º e fundo de garantia, esse é o País que nós vivemos e esse é o País que eles querem que o Estado se omita em relação a esses contratos de trabalho. Isso preocupa muito. Então, vamos reduzir o Direito do Trabalho, vamos extinguir a Justiça do Trabalho, e a gente faz o quê com essa camada da população que precisa da Justiça do Trabalho?

 

Sul21 – Digamos que acabem com a Justiça do Trabalho. Qual seria a consequência para o trabalhador e para o empresário? As disputas trabalhistas vão continuar, não se acaba com a disputa entre trabalho e capital.

 

Gralha: A Justiça do Trabalho tem um fim maior que é a pacificação. Ela soluciona os conflitos entre o capital e o trabalho. O que isso quer dizer? Quando o trabalhador está com um problema com o empresário, vem a Justiça do Trabalho, que é um ramo especializado e soluciona, pacifica o conflito. É uma ideia de civilidade das relações. Não é o toma lá da cá. No momento em que extingue esse ramo especializado da Justiça, joga toda essa demanda que não deixa de existir, o conflito continua existindo, todos os problemas persistirão, para um dos ramos da Justiça, que nós não sabemos qual é, se é a Justiça comum estadual ou federal. Hoje, nós temos um volume de processos a serem julgados na Justiça do Trabalho de 5,5 milhões de processos. ‘Nossa, é muito processo’. Só que a Justiça do Trabalho é a mais eficaz e a mais eficiente. A Justiça Federal tem 10 milhões de processos para serem julgados e a Justiça estadual tem 63 milhões. Então, o que eu vou fazer? Vou jogar esse enorme contingente de processos que nós temos na Justiça do Trabalho para outras que já estão absolutamente assoberbadas. O que nós teremos como consequência imediata? A demora, o dobro ou triplo do tempo, dos trabalhadores ou dos empresários, que também são autores de ações, de terem suas demandas atendidas.

 

Só que quando a gente fala de demanda da Justiça do Trabalho, a gente está falando de salário, de subsistência, de parcelas que não foram pagas e que servem de subsistência para o trabalhador. Se ele vai demorar em vez de oito meses, como é na Justiça do Trabalho, para dois anos e meio na Justiça Federal e dois anos e oito meses na Justiça estadual, o que a gente vai ter? Um empobrecimento ainda maior.

 

E o empresário que cumpre as leis também não vai estar sendo atendido com essa alteração, porque ele está entregando um serviço, um produto que observou legislação trabalhista, legislação previdenciária e tributária, com um custo maior do que aquele que está sonegando, que é o nosso réu. O nosso réu da Justiça do Trabalho é aquele que sonega, sonega direito trabalhista, sonega contribuição fiscal, sonega contribuição previdenciária. Esse empregador correto vai ver a concorrência desleal aumentar cada vez mais. E é isso que a gente tem que ver na sociedade como um todo. Guardadas as proporções, quando a gente está com uma doença, tem que ir no especialista, e esse especialista vai nos dar uma resposta rápida, segura e eficaz. Se a gente for cair na vala comum, vamos ter atendimento mais demorado e não tão adequado para as nossas demandas.

 

Sul21 – Há algumas semanas saiu um estudo de que aplicativos como o Uber e o iFood são hoje os maiores empregadores do Brasil, mas eles estão numa situação que, na verdade, é de informalidade. Não tem vínculo empregatício. Como tu vês essa relação? É preciso ter alguma regulamentação?

 

Gralha: A discussão quanto às condições desses empregados ou prestadores de serviços é feita no mundo inteiro. Não é uma realidade apenas aqui do Brasil, mas em todo o mundo se discute como o Uber, o iFood, esses prestadores de serviço serão considerados. Eles serão empregados, autônomos. Essa discussão necessariamente vai passar por alguma espécie de regulamentação. Sempre que a gente tem uma regulamentação definindo as suas condições, pelo menos nós temos limites impostos, tanto para a exploração da mão de obra, quanto para quem tem interesse em prestar essa mão de obra. Então, se eu vou prestar essa mão de obra, eu já sei quais são os limites, eu posso me submeter ou não. Mas se eu não sei se realmente está aberta essa relação, pode acabar acontecendo abusos que, provavelmente, a Justiça do Trabalho vai se deter e vai acabar avaliando se são vínculos de empregos ou considerados autônomos.

 

Sul21 – Parece que uma grande característica do sistema capitalista é que ele, quando impõe uma regra que leva à precarização das condições de trabalho, em vez de se conseguir correr atrás para regular, essa precarização acaba se impondo como uma norma. Te parece que essa uberização vai se expandir para outras áreas do trabalho? Vai ser o novo normal prestar um serviço para uma empresa sem ter vínculo empregatício?

 

Gralha: A informalidade nunca foi novidade. Diversas formas de prestação de serviço fugindo da figura do emprego formal sempre existiram e sempre foram ponto de polêmica e discussão. É claro que, a partir dessa questão dos aplicativos, o quanto mais nós usamos o aparelho celular para fazer tudo, não só para tomar serviços, mas também para rede bancária e diversas demandas que nós temos, a gente tem uma modernização que vai nos exigir, sim, novos conceitos e novos julgamentos, e acredito que vai se expandir para outras áreas da prestação de serviços. Tanto que nós tínhamos apenas a questão do Uber, dos aplicativos de transporte, no início e agora a gente já passou para entrega de alimentos. Tenho certeza que vai se expandir, só que o quanto a gente vai interagir ou intervir nessas ações é que vai ser fundamental para evitar a precarização. O mais fundamental de avaliarmos é o quanto essa pessoa que presta o serviço está bem remunerada e bem valorizada.

 

O que a gente precisa no nosso País é ter um empregado ou um prestador de serviço bem remunerado e bem valorizado, reconhecido como cidadão de direitos, que responde por seus deveres e tem os seus direitos. Quando a gente entender que aquele prestador de serviços ou o empregado é detentor de direitos, merece reconhecimento e dignidade, principalmente, a gente consegue ter patamares para regulamentar. Enquanto eu não tenho o mínimo de dignidade definida entre nós, aí entra a precarização e isso a gente combate.

 

A realidade da Justiça do Trabalho é de um País que explora pessoas como escravos, que explora crianças e adolescentes em trabalhos ilegais, então a gente tem que se deter sempre com o viés da dignidade do nosso trabalhador, sendo ele empregado ou prestador de serviço. Mesmo que ele não tenha o vínculo de emprego reconhecido, ele merece um tratamento de dignidade como qualquer cidadão.

 

Sul21 – Esses dias eu vi uma postagem de que já existe uma espécie de uberização do sistema educacional. Professor que é contratado para um número de horas X, não tem horário fixo, não tem o contrato nem para o ano inteiro de trabalho. O próprio contrato intermitente já permite isso de alguma forma. A pessoa trabalha de terça a quinta, segunda-feira não sabe se vai ser ela, se vão contratar outra pessoa. De que maneira a legislação poderia controlar a expansão da uberização, o que hoje parece ser incontrolável?

 

Gralha: Quanto à informalidade, propriamente dita, não em relação com o contrato intermitente, nunca vai fugir do conceito da relação de emprego. Se estiverem presentes todos os requisitos da relação de emprego, a Justiça do Trabalho vai declarar essa relação, mas evidentemente que a gente tem que passar por esses conceitos e tem que haver provas da existência desses quesitos para reconhecer. Então, ainda que a legislação regule essa relação de emprego, vai ser aplicada por essa pessoa independentemente do nome que darem a ela. Podem dar o nome de eventual, esporádico, de vez em quando, o que eles quiserem, mas, se ele realmente tiver um trabalho subordinado e não eventual, ele vai ser reconhecido como empregado pela Justiça do Trabalho.

 

Sul21 – Nesse sentido, a reforma trabalhista não acabou estimulando a informalidade?

 

Gralha: A partir da reforma trabalhista nós temos um aumento da informalidade, isso é constatado, é numérico, é segundo o IBGE. Não que a lei propriamente dita tenha empurrado as pessoas para o mercado informal, não é isso. Acho que o grande colapso da economia leva as pessoas a isso, porque elas estão desesperadas, precisam realmente subsistir. Então, como elas precisam se manter, manter as suas famílias, elas acabam buscando qualquer forma de prestação de serviço, principalmente na informalidade, que é o que acaba dando a abertura. Só que a ideia lógica da modernização que era proposta pela reforma trabalhista era o contrário, era dizer que facilitaria as contratações. Não facilita, continua exatamente a mesma coisa. O que facilita a contratação é investimento, aquecimento da economia, isso aumentaria os postos de trabalho e não o que está acontecendo agora, em que em março tivemos a informação de fechamento de postos de trabalho. Isso que faz com que as pessoas fujam para a informalidade. Aumenta a informalidade, prejudica diretamente a nossa Previdência Social.

 

Sul21 – Um grande problema da Previdência hoje é uma questão de financiamento. O número de pessoas ativas financiamento as inativas vêm caindo e o aumento da informalidade também diminui o número de contribuintes. Como se poderia mudar a legislação para, em vez de jogar as pessoas na informalidade, facilitar a formalização?

 

Gralha: Estímulo não passa por qualquer ideia de remoção de direitos. O que acontece? Eu tenho um empregado formal e há uma redução de direitos. O que ele vai pensar numa ideia imediata? ‘Eu vou para a informalidade, porque lá eu ganho mais, mesmo que eu não contribua para a Previdência, eu quero pensar na ideia imediatista’. No final do mês eu vou receber quanto? Reduziram os meus direitos, então não vou ficar mais nesse emprego, vou para a informalidade. Qualquer ideia de estímulo de contratação, não passa por redução de direitos. Qualquer ideia que tenha de melhora da economia, de dinheiro circulando na economia, não pode passar pela redução de direitos. Volto a dizer, economia aquecida pressupõe empregados valorizados e bem remunerados. Esse é o empregado que faz o carnê, que se ‘endivida’ para consumir mais. É o que a gente não tem hoje. O que a gente precisa fazer é investimento, abrir postos de trabalho.

 

A contratação sempre foi da mesma forma, os direitos sempre foram os mesmos e nós tínhamos pleno emprego há pouquíssimos anos. Então, não é a redução de direitos ou a simplicidade da contratação que vai mudar isso.

 

O que eu posso dizer? Vamos simplificar o e-social, como o próprio governo já propôs, isso sim auxilia o pequeno e médio empresários, que são os maiores empregadores do Brasil hoje, a contratarem mais, porque eles têm uma dificuldade mecânica no e-social. É um problema técnico, não tem absolutamente nada a ver com a contratação e muito menos com o direito dos trabalhadores. Os direitos foram conquistados ao longo de décadas exatamente porque o trabalhador precisava ter o mínimo de dignidade assegurada. Se a gente for começar a retirar direito, retirar direito, vamos voltar para a revolução industrial e vamos ter jornadas de 15, 18 horas, crianças e mulheres grávidas trabalhando indiscriminadamente. Ali existia uma pobreza.

 

Sul21 – Te parece que esse é um cenário possível ou é muito exagerado?

 

Gralha: É exagero. Acho que é exagero porque a população já é muito consciente da necessidade de dignidade das pessoas. As pessoas têm um discernimento mínimo do bem estar social. Acho que é só uma maneira ilustrativa da gente dizer: ‘Vamos tirar direitos, tirar direitos e tirar direitos? Que bom era a época que a gente não tinha direito nenhum’. Não é, pelo contrário. A China, que é uma das grandes comparações nossa, hoje o trabalhador chinês custa mais caro que o nosso trabalhador e recentemente eles criam um código do trabalho, que antes não tinha e hoje existe pelo menos um mínimo, e o PIB da China dobra. Ou seja, se valorizou o empregado, se bem remunerou o empregado, disse que ele pode tirar mais algumas semanas de férias. Aí esse empregado passa a produzir mais poque ele é mais valorizado, ele é bem remunerado. Eu sei que parece complexo, numa dificuldade econômica de todos, dizer para pagar mais que vai melhorar. Imediatamente, eu sei que parece difícil ter essa visão, mas a médio e longo prazo é isso que acontece. É isso que acontece quando teve no governo anterior a autorização da antecipação do fundo de garantia, injeta dinheiro na economia. É isso que precisa, que as pessoas estejam com dinheiro, bem valorizadas nos seus empregos para continuarem produzindo.

 

Sul21 – Me parece que temos duas maneiras bem distintas de enxergar a relação entre capital e trabalho. Uma é sob esse modelo da uberização, sem nenhuma estabilidade, em que o trabalhador não tem previsibilidade, vai até onde conseguir, se ficar doente, o problema é dele. O motorista de uber, se sofre um acidente e ficar um mês parado, perde a remuneração por um mês. E, por outro lado, o modelo do estado de bem estar que garante o mínimo de estabilidade ao trabalhador. A Previdência, o fundo de garantia, o seguro-desemprego garantem alguma previsibilidade para que ele saiba que, se perder o trabalho, vai conseguir se virar por alguns meses. Esse segundo modelo está sofrendo um verdadeiro ataque ideológico no governo Bolsonaro. Como se consegue mostrar para o empresariado que isso poderia ser mais benéfico até para ele?

 

Gralha: A impressão, e aí é a minha leitura particular, é que as pessoas estão muito preocupadas com o seu. Como está a minha aposentadoria, como está a minha relação de emprego, a minha situação no Brasil, e acabam não tendo esse esforço de discussão, de debate, de empatia, de saber como está o próximo, como vai ser a aposentadoria das outras pessoas. Estamos vivendo um momento muito individualista, então é difícil fazer esse movimento, inclusive pela fala do governo que ataca isso, é muito difícil abrir a consciência ou abrir o debate de quanto é importante as pessoas estarem seguras e bem remuneradas nos seus empregos. Salvo quando isso atinge elas mesmas.

 

Voltando à Justiça do Trabalho, nós não tivemos, nesse primeiro semestre, nenhum movimento de greve e todos eles foram solucionados pela Justiça do Trabalho. Quando a pessoa teve o seu serviço bancário mantido, serviço de água mantido, serviço de transporte público mantido, foi a Justiça do Trabalho que agiu, mesmo que ela tenha um discurso contrário à Justiça do Trabalho, não se dá conta é que a estrutura de civilidade da Justiça do Trabalho manteve o bem estar dela também. Então, precisa muito um movimento de espaços de fala, ocupar todos os locais de fala para dizer o quanto isso é importante, que o nosso empregado tem que ter sim uma carteira de trabalho assinada, que ele tem que estar seguro na sua previdência. Se ele se acidentar, se ele adoecer, ele vai ter uma garantia de que vai conseguir se recuperar, se restabelecer e voltar para o trabalho. Então, é tudo uma construção de sociedade que pensa na dignidade de todos. Acho que a gente tem que falar, tem que conscientizar as pessoas de saírem desse movimento individualista de acharem que enquanto está tudo bem comigo os outros não interessam.

 

Acho também que a gente tem que fazer esse movimento coletivo mesmo de olhar para o próximo e saber se o próximo, com essa reforma da Previdência, vai ficar bem. Essa reforma da Previdência vai atingir os mais pobres, vai atingir os jovens, vai atingir as mulheres, vai atingir o rural, vai atingir os pensionistas e isso não pode te deixar tranquilo porque para ti só vai aumentar a idade. A gente tem que fazer um movimento político e social de conscientização para as pessoas realmente começarem a debater e ouvir, principalmente, as fontes verdadeiras de notícia, porque a gente sabe a onda de fake news que rola nas redes e também nos preocupa muito.

 

Sul21 – Outro viés de ataque é o enfraquecimento dos sindicatos. Qual te parece que é o impacto disso?

 

Gralha: É enorme. A reforma é muito antagônica nesse aspecto. Ao mesmo tempo que ela coloca nos sindicatos um papel importantíssimo que é do negociado sobre o legislado, ela vai ali adiante e retira a sua fonte de custeio. Isso é muito preocupante. O sindicato hoje tem uma dificuldade enorme de se manter sem as contribuições dos seus associados. Principalmente com os termos da Medida Provisória 873, de março, fazer hoje com que um trabalhador assalariado receba um boleto em casa e recolha espontaneamente para o seu sindicato, convencê-lo da importância do seu sindicato, realmente é um grande desafio. O sindicato vai precisar se reinventar, numa ideia de resiliência. Há uma enorme dificuldade de manutenção das atividades do sindicato, então ele vai ter que se recriar e se propor de forma suficientemente forte para de fato representar as categorias, porque eles vão ser fundamentais na manutenção da dignidade mínima de quem vai realmente sofrer nessa lógica do negociado sobre o legislado se não estiver bem representado. Evidentemente, apenas um dos lados vai falar mais alto, vai acabar impondo uma situação e as pessoas vão se submeter porque precisam de um emprego.

 

Sul21 – De alguma forma, a necessidade de reinvenção dos sindicatos não pode ser positiva, porque eles deixaram de demonstrar seu valor para os trabalhadores?

 

Gralha: Em muitos segmentos, sim. Havia dezenas de milhares de sindicatos. Havia um excesso enorme de representatividade que não representava. Mas, voltando para a ideia antagônica, o problema é tu não ter uma reforma sindical séria e fazer, na reforma trabalhista, um ataque direto aos sindicatos, retira a fonte de custeio, sem possibilitar, por exemplo, ‘agora ele vai poder representar melhor’. De repente, somente aprovar o negociado sobre o legislado faria o sindicato mostrar a sua força. Aí as pessoas se associariam, se dissociariam de forma espontânea e poderiam continuar contribuindo quando vissem que ele os representa. Não aconteceu. Vai precisar fazer isso? Vai. Precisava fazer antes? Precisava. Muitos não faziam? Muitos não faziam. Nós temos diversos problemas, mas a grande maioria dos sindicatos tinha um papel fundamental e exercia com competência aquelas atribuições constitucionais. Mais uma vez aquilo que não funcionava acabou por ser o grande viés que puniu o que funcionava, como acontece em toda a reforma trabalhista.

 

Sul21 – Temos visto uma série de reformas que vão se encadeando. Teve o teto dos gastos, depois a reforma trabalhista e agora a reforma da Previdência. O governo já anunciou, embora não tenha especificado, a carteira de trabalho verde e amarela. É algo que certamente vai vir depois da reforma da Previdência caso o governo consiga aprová-la. Acho que as pessoas ainda não pararam para pensar sobre isso. O que te parece essa proposta e quais as consequências que tu vês para o mercado de trabalho?

 

Gralha: A carteira verde e amarela não é nenhuma novidade. Já constava na proposta de governo do presidente Bolsonaro, mas sem nenhum esclarecimento. Nós ainda não temos o suficiente para fazer um debate sobre o que realmente seria, nós temos apenas as falas do ministro Paulo Guedes a respeito disso. Ele falou que a carteira de trabalho verde e amarela representa menos direitos, mas mais empregos. A justificativa dele é para tornar a relação civil. Ele fala, e até a expressão que ele usa é bastante curiosa, é de que vai ser uma relação ‘privada, privada, privada’. O estado não intervém em nada. Ou seja, essa não vai ser uma competência da Justiça do Trabalho. Então, se não acabar a Justiça do Trabalho com uma extinção propriamente dita, cria a carteira verde e amarela e a médio e longo prazo nós não temos mais relação de emprego tradicional, com a carteira azul. Traz consequências muito, muito drásticas mesmo. Eu vejo a carteira verde e amarela como um divisor de águas na sociedade brasileira. E realmente uma proposta que, dependendo da forma como vier, a gente vai se colocar contra.

 

O que temos de informação? Que ela viria direcionada já para os novos empregados. Todos que vão ingressar no mercado de trabalho necessariamente vão ingressar com essa carteira verde e amarela e será uma opção para aqueles que estão no mercado tradicional. Vivemos isso recentemente com o fundo de garantia, que era uma faculdade do trabalhador optar em detrimento do seu regime de estabilidade decenal, e nós vimos que não houve faculdade alguma, não houve direito de opção algum para os trabalhadores. Todos acabaram aderindo em pouquíssimo prazo ao FGTS, ainda que para alguns não fosse mais interessante essa troca. Então, nós teremos um mercado, a médio e longo prazo, todo verde e amarelo. O que isso quer dizer? Depois o Guedes até corrigiu, dizendo que vai ter os direitos da Constituição, mas não vai ter os direitos da CLT e outras leis. Isso é muito preocupante porque cria uma situação de aumento da pobreza do nosso trabalhador. Aí voltamos ao início, do quanto o nosso trabalhador precisa estar bem remunerado e valorizado. Nós temos uma carteira verde e amarela que vai remunerar menos e que, portanto, vai trazer um prejuízo a médio e longo prazo para a economia. É bastante preocupante, vai criar grandes diferenças entre os trabalhadores, o que é muito ruim, até em termos de representatividade. A gente falava dos sindicatos agora. Vai ter empregados contra outros tipos de empregados dentro de uma mesma empresa. Nós teremos sérias discussões constitucionais a respeito dessa figura, porque eu não tenho dúvida nenhuma que seria inconstitucional a carteira verde e amarela, mas até lá acho que a gente tem bastante espaço de discussão, de conscientização, principalmente da população brasileira, que é quem o Congresso deve ouvir.

 

Sul21: Internacionalmente, esse modelo de relações ‘privadas, privadas, privadas’ é algo que se pratica com sucesso?

 

Gralha: Fazer comparação com a realidade de trabalhadores e empreendedores de outros países é muito difícil. Eu sei que muitas pessoas gostam de fazer essa comparação em relação aos Estados Unidos, mas nós não temos os trabalhadores americanos, nem os empregadores americanos. Nós não remuneramos os trabalhadores brasileiros como os americanos. De repente se a gente tivesse uma realidade de pagamento de salário como os americanos recebem, a gente teria outra discussão. A gente não tem a cultura americana. Lá, maioria das iniciativas econômicas funciona e vai funcionar porque é a maior economia do mundo, assim como outros países mais desenvolvidos conseguem trabalhar com conceitos de dignidade muito melhor que nós, até porque passaram por situações de guerra, por exemplo.

 

Parece que nós nos acostumamos com a pobreza, com o morador de rua, com a pessoa mal remunerada. Parece que nós nos acostumamos com a falta de dignidade e com as milhares de pessoas que morrem de fome no País todos os anos, e a gente não faz nada quanto a isso.

 

Existem, de fato, outros locais em que empregados e prestadores de serviço têm sucesso nas suas relações. Podemos dizer que bom que eles conseguiram fazer isso lá. Nós não conseguimos nem resolver a educação fundamental no nosso País. Enquanto nós não tivermos essa base, enquanto não tivermos conceitos concretos, mínimos de dignidade, de direito e bem estar mínimo da nossa população, nós não podemos pensar em falar em falta de intervenção do Estado nas relações. Porque se o Estado precisa intervir nas relações de trabalho hoje, é porque, se se ausentasse, nós estaríamos na barbárie.

 

Fonte: Luís Eduardo Gomes – Sul 21

 
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