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Chile: capitalização da Previdência faz idosos morrerem trabalhando e suicídio bater recorde
Modelo chileno é similar ao que a equipe econômica de Jair Bolsonaro pretende instalar no Brasil
17/04/2019




 Por Felipe Bianchi (Barão de Itararé) e Leonardo Severo (Hora do Povo), de Santiago*

O regime de capitalização da Previdência no Chile obriga os aposentados a seguirem trabalhando, muitas vezes, até morrer. É o caso de Mario Enrique Cortes, “jubilado”, que, aos 80 anos, padeceu de insolação em pleno inverno, como jardineiro, em frente ao Palácio de La Moneda, em 2014. De lá para cá, o país vem acumulando episódios trágicos como este. Somado à onda crescente de suicídios na terceira idade – com tiro, enforcamento ou envenenamento -, o cenário escancara a realidade sombria de uma terra em que a aposentadoria foi transformada em negócio para benefício das Administradoras de Fundos de Pensão (AFP).

“O atual sistema de aposentadoria chileno tem 38 anos e foi imposto pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1981. Não houve discussão. O parlamento era uma junta militar, composta por um representante de cada segmento das Forças Armadas. Os generais e o ministro do Trabalho da época, José Piñera, irmão do atual presidente do Chile, Sebastian Piñera, criaram as AFP. Hoje, a capitalização faz nossos idosos morrerem trabalhando e a taxa de suicídio bater recorde”, afirma o representante do movimento No+AFP (Chega de AFP), Mario Villanueva. O dirigente condena “a perversão de um sistema desenhado para que grandes grupos econômicos e seguradoras transnacionais ampliem seus lucros se aproveitando do sacrifício de milhões de aposentados”.

Os idosos totalizam cerca de 16% da população chilena, de acordo com o censo de 2017, pouco mais de 2.800.000 pessoas. Uma em cada cinco segue trabalhando a fim de complementar a aposentadoria. Para Rosita Kornfeld, ex-diretora do Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento da Universidade Católica e especialista da Organização das Nações Unidas (ONU), tal número escancara o abandono desse segmento por parte do Estado. “Eles têm um problema grave de falta de recursos e também de solidão e desamparo, o que os leva a tomarem atitudes extremas”, avalia. “Se não prestarmos mais atenção e cuidados, os casos de suicídio vão continuar crescendo”.

Radicada no país há 11 anos, a psicóloga brasileira Ana Paula Vieira, fundadora e presidenta da Fundação Miranos, se dedica ao trabalho de prevenção do suicídio entre os idosos. “Obviamente o aumento alarmante no número de suicídios não pode ser chamado de fake news. Há vários estudos, com dados oficiais do Ministério de Saúde, que revelam as taxas muito altas de suicídio na terceira idade em comparação com a média da sociedade chilena”, explica, em resposta à afirmação de Paulo Guedes, superministro da Economia de Jair Bolsonaro, de que as informações sobre o crescimento do fenômeno no Chile não passariam de notícias falsas.

Vieira ressalta que só agora o tema começou a ser discutido de fato. “Até pouco tempo, o suicídio na terceira idade não era visibilizado por aqui. Falava-se muito de questões como moradia, o alto custo da saúde e, claro, a questão da aposentadoria, mas o suicídio continuava um tabu”, sublinha.

Os casos emblemáticos de casais de idosos que tiraram a própria vida foram o estopim para que o tema finalmente entrasse em evidência, ganhando manchetes não só no Chile, mas também na mídia estrangeira. “Em 2018, as taxas continuaram altas e outros casos envolvendo casais de idosos vieram à tona e, por isso, o assunto vem recebendo tanta atenção, inclusive em nível de governo”, afirma. “Tenho ido ao Senado, como integrante da Comissão do Idoso, para apresentar dados e estudos sobre este problema”.

O Estudo Estatísticas Vitais, do Ministério de Saúde e do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) do Chile, é claro: entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram a própria vida. O levantamento – que não contempla o agravamento detectado até mesmo pela mídia privada no último período – aponta que os maiores de 80 anos apresentam as maiores taxas de suicídio: 17,7 por cada 100 mil habitantes – 70% superior à média do continente, seguido pelos segmentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de 15,4, contra uma taxa média nacional de 10,2.

Segundo o Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento, da Universidade Católica, são índices mórbidos, que têm crescido de forma acentuada e que colocam o Chile como um dos países com os mais altos índices de suicídios nesta faixa etária em toda a América Latina. O fato de muitos meios de comunicação no Brasil citarem pretensos estudos tendo por base dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2012, apenas revela a tentativa de fugir do debate, pois foi a partir daí que, passadas as três décadas da “reforma” ditada por Pinochet, “os idosos começaram a receber as suas aposentadorias e puderam dimensionar o quão pouco receberiam e que seu dinheiro não daria para nada”, explica Mario Villanueva. Atualmente, 80% das aposentadorias estão abaixo do salário mínimo (301 mil pesos, ou 1.738 reais) e 44% abaixo da linha da pobreza.

Uma parcela significativa dos aposentados recebe cerca de 110 mil pesos (635 reais), quantia inexpressiva em um país em que os remédios e a alimentação são particularmente caros. Para se ter uma ideia do que representam esses diminutos ganhos no dia a dia dos chilenos, basta observar que, desde fevereiro, o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) calcula que o preço da cesta básica alimentar em torno de 67.235 pesos (388 reais). A “canasta” está composta pelos seguintes produtos e quantidades: leite, 10 litros – $ 7.876; pão, 10 unidades de 500 gramas – $ 8.167; arroz, 1,5 quilo – $ 1.392; ovos, 20 unidades – $ 2.993; queijo, um quilo – $ 6.137; carnes de frango e de vaca, seis quilos – $ 29.533; frutas, seis quilos – $ 5.022 e verduras, oito quilos – $ 6.115. “Isso sem contar as contas luz, gás e os altos custos de medicamentos e moradia, acrescenta Villanueva.

Miséria, abandono e solidão

Apesar de ser lógico traçar um paralelo entre esse índice e a condição de miséria imposta por um sistema de Previdência que, na prática, nega o direito à aposentadoria digna a uma enorme parcela da população, Ana Paula Vieira alerta: “O suicídio é um fenômeno multicausal. Na terceira idade, ele tem a ver com abandono, com solidão e, obviamente, com problemas financeiros. A discussão passa muito pela precariedade da saúde e por dificuldades econômicas dos idosos. Entretanto, é preciso educarmos a sociedade sobre a complexidade desse problema para conseguir enfrentá-lo ao invés de escondê-lo”.

“Claro que para impor um sistema de Previdência como o do Chile foi necessário haver manipulação midiática e campanha de marketing. Mas não foi só isso. É um sistema imposto pela força”. Esta é a avaliação de Oriana Zorrilla, histórica jornalista chilena. “Se não tivesse ocorrido a ditadura e a repressão, somadas às mentiras e ilusões vendidas à população sobre o modelo de aposentadoria, não teria sido possível aprovar um sistema assim”.

Presidenta do Conselho Metropolitano do Colégio de Jornalistas do Chile, entidade que defende a categoria no país, Zorrilla viveu concretamente a experiência da implementação das Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), que transformaram a Seguridade Social em ativos do mercado financeiro a partir da capitalização individual da Previdência. Por ter começado a contribuir antes do novo sistema entrar em vigência, a jornalista conseguiu se aposentar pelo modelo antigo. “A única vantagem que tenho de ser velha é ter o privilégio de ter uma aposentadoria digna, já que me aposentei pelo sistema anterior, infinitamente melhor que o das AFP”, sentencia.

“Meu marido, um engenheiro eletrônico especializado em medicina nuclear, sempre teve um salário três a quatro vezes maior que o meu. No entanto, sua aposentadoria, que é paga pelo sistema das AFP, é muito menor que a minha”, diz. Segundo Zorrilla, o marido dela, como milhões de cidadãos chilenos, teve o azar de ter começado a contribuir somente no sistema imposto pela ditadura, o que foi obrigatório a partir da sua instalação.

“Por ter sido gerente e recebido um salário maior que o meu a vida toda, todos me diziam que ele era um bom partido. Agora, eu sou o bom partido, por não depender do sistema das AFP. É um contrassenso total”, ironiza.

Os jornais e as emissoras de rádio e televisão venderam muitas mentiras sobre o que seria este modelo de aposentadoria, relata Zorrilla. “Os meios de comunicação não só fizeram, lá atrás, como seguem fazendo campanha para um sistema que, na realidade, é um assalto à mão armada contra toda classe de trabalhadores: de jornalistas a engenheiros, de funcionários públicos a operários”.

Há poucos dias, o Colégio de Jornalistas promoveu o leilão da biblioteca de um consagrado jornalista de Santiago, Rodrigo Beitia, diagnosticado com Alzheimer. “A família deste profissional brilhante colocou à venda todos os livros adquiridos ao longo de sua vida para ajudar a pagar um tratamento e um lugar adequados para os cuidados de saúde necessários”, conta. “Por um lado, é um gesto bonito, pela solidariedade que ele recebeu de todos nós. Por outro, é um retrato que escancara uma realidade angustiante”.

Contabilidade nefasta

Mario Villanueva ressalta que “enquanto bancos como o BTG Pactual (do ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes) pagam 4% de remuneração pelo dinheiro aplicado, cobram dos mesmos trabalhadores chilenos uma taxa de juros de 25% a 30%, fazendo com que tais instituições financeiras multipliquem rapidamente o seu patrimônio”. Assim, o total de fundos acumulados pelas AFPs já beira os 220 bilhões de dólares, explica, o equivalente a 75% do Produto Interno Bruto (PIB) do Chile. “Dois terços destes recursos, US$ 151,9 bilhões, estão, conforme a Fundação Sol, sob o controle de três empresas norte-americanas: Habitat, US$ 57,76 bilhões (27,4%); Provida, US$ 53,03 bilhões (25,2%) e Cuprum, US$ 41,14 (19,5%)”, esclarece Villanueva.

É para mudar esta irracionalidade que a No+AFP propôs recentemente ao parlamento um projeto que enfrente este modelo. “Estamos vivendo as consequências de um sistema instalado por uma ditadura, cujos impactos recaem sobre uma população que vai envelhecendo com aposentadorias insuficientes para sobreviver com um mínimo de dignidade. Isso se repete cada vez mais e vamos tendo muitos exemplos de idosos que se suicidam porque não podem mais viver com essas pensões e que estão sós. Porque quando se impõe o neoliberalismo, o ‘salve-se quem puder’, as famílias vão se desagregando, multiplicando-se os casos de abandono e suicídio”, aponta.

Villanueva recorda que a palavra jubilación (aposentadoria, em espanhol) vem de júbilo – alegria, empolgação, entusiasmo –, período em que as pessoas deveriam estar desfrutando. O oposto disso, enfatiza, é o caso do casal de idosos que após mais de cinco décadas juntos decidiu pôr fim às suas vidas, mencionado também por Ana Paula Vieira. “O fato é que com recursos cada vez menores, os filhos – que também não são tão novos – têm que passar a se responsabilizar pelos pais. E quando não há filhos, os pais passam a depender de vizinhos. Tudo para que uns poucos especuladores, bancos e transnacionais, lucrem de forma exorbitante”, protesta.

*O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está no Chile com os seguintes apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Diálogos do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, CUT Chile e Sindicato Nacional dos Carteiros do Chile (Sinacar)

 
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